Um mundo rigorosamente imperfeito

 

Algo desconhecido entre nós - mesmo entre os aficcionados de BD - mercê talvez do seu carácter “ underground “ e da especificidade temática do seu trabalho, Charles Burns é hoje, indubitavelmente, um dos mais respeitados autores independentes e um fenómeno de culto um pouco por todo o lado graças à singularidade com que ilustra as suas histórias recheadas de personagens bizarras e atmosferas sombrias.

A matéria - prima são os diversos clichés dos comics e da cultura “ trash “ americana em geral (teenagers desajustados, cientistas loucos, invasões extraterrestres, mutações genéticas e policiais série B) reinterpretados segundo uma perspectiva pessoal e inovadora. Uma dessas inovações é o seu estilo obsessivamente meticuloso, gélido e maquinal, a tal ponto que quase pomos em causa a possibilidade de as ilustrações serem executadas por mãos humanas. De facto, muito do impacto e da sensação de estranheza reside no aspecto gráfico que vai ao encontro daquilo que qualquer leigo na matéria espera encontrar num livro de BD (bonecos divertidos para agradar às crianças) mas que por detrás dessa aparente inocência esconde uma trama complexa, subversiva e politicamente incorrecta. Um exemplo flagrante foram as diversas cartas de protesto dirigidas ao editor de um jornal regional onde Burns publicava uma BD sobre uma invasão de aliens com a forma de globos oculares gigantes (!) Num excerto de uma das cartas pode ler-se: “A nova tira de BD “ Big Baby “ não tem lugar num jornal progressista e humanista como o “East Bay Express “ ! ... não mostra respeito pelas mulheres e pelas minorias ... o desenho é opressivamente cuidado e “limpinho” . Nós, os leitores do “Express“, esperávamos uma coisa mais leve e espontânea ... Mais grave ainda, esta suposta BD parece seguir uma linha narrativa extremamente negativa, sombria, perturbadora ... Em suma, esta BD é sexista, violenta e ignora as minorias. É feia, deprimente e só uma mente mesquinha, deturpada e doente poderia conceber um mundo onde tal BD pudesse existir e muito menos ser publicada. “

Adepto do horror psicológico, do humor sarcástico e do bizarro, Burns criou algumas das personagens mais estranhas que alguma vez se viram na BD: um detective ao estilo de Marlow, denominado El Borbah, cuja diferença reside no facto de andar vestido à lutador de wrestling e investigar casos de adolescentes que substituem partes do próprio corpo por peças mecânicas até se transformarem em robots, ou de indivíduos que tentam recuperar a juventude transplantando as suas cabeças para corpos de bebés; Big Baby, um miúdo subdesenvolvido cuja ingenuidade, simbolizada pelo rosto de bebé, é constantemente posta à prova pelo horror do mundo dos adultos; Dog Boy, um sujeito normal cujos problemas cardíacos o levam a entregar-se aos cuidados de um cirurgião de reputação mais do que duvidosa. Este resolve transplantar-lhe o coração de um cão e a partir daí Dog Boy passa a ter por hábito dormir numa casota, chegar atrasado ao emprego por andar a perseguir gatos ou carros, enterrar ossos no quintal e cheirar o traseiro das raparigas; Bliss Blister, um pregador de rua e falso milagreiro, cheio de traumas de infância, que é contactado por uma entidade ciclópica que lhe afirma ser Deus e lhe pede para reunir um rebanho de fiéis a fim de serem salvos do apocalipse …

 

As mesmas fixações na adolescência atribulada, acompanhada de aterradoras metamorfoses revestidas por uma capa de surrealismo onírico, formam a base da sua última criação, uma série denominada “Black Hole”, que sintetiza na perfeição todos os aspectos do imaginário do autor e reflecte a sua total maturidade e refinamento em termos narrativos e artísticos. O ambiente das histórias, denso e perturbador, remete-nos para o interior de uma realidade que tem tanto de fascinante como de assustador, dando a sensação de mergulharmos na mente de Burns quando este se encontra a sonhar. Sem dúvida, das mais interessantes e empolgantes criações dos últimos tempos em BD.

A importância do autor encontra-se também sublinhada no seu trabalho comercial, do qual se destacam as capas para as revistas “Time” e “Esquire”, a capa do álbum “Brick By Brick” de Iggy Pop, a concepção do design do cenário do Ballet “The Hard Nut”, baseado no clássico “o Quebra Nozes”, além de diversas capas para a editora alternativa “Sub-Pop”.

Se Charles Burns fosse cineasta, seria algo semelhante ao resultado do cruzamento de David Lynch com David Cronemberg, e sem dúvida bastante mais conhecido...

 

Pedro F.

 

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